QUANDO O ATENDIMENTO EM SAÚDE É SELETIVO


 

 

 

          Quando falamos sobre Medicina, Enfermagem ou qualquer outro ramo da saúde, logo nos vem à cabeça o juramento de Hipócrates, que encontra correspondência no Código Médico em várias etapas: “Capítulo III - Responsabilidade Profissional, em seu Artigo 1º - É vedado ao médico... Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. Atenho-me a este especificamente para falar sobre atendimentos em casos de Alcoolismo, escolhendo um como exemplo de seletividade no atendimento de urgência.  


          No convívio com alunos que atendem em serviços de urgência, ouço  seus relatos quando estamos tratando sobre humanização hospitalar, que  variam em acontecimentos na equipe, de relacionamento e também quanto ao atendimento ao público. Um, entretanto, me chamou a atenção: os casos de Alcoolismo. A ideia romantizada que temos da área de saúde se choca com os relatos de quem vive o dia a dia atendendo, assim como na pele de que precisa de atendimento. Parece-me que o tempo de faculdade é um tipi de vivência e a prática endurece a pele do antes aluno e agora profissional de saúde. Bom é ouvir o que todos têm a dizer, profissionais de saúde e pacientes. Conversar sobre as práticas de humanização é necessário, dialogar sobre a necessidade de melhorar os atendimentos e suavizar a vida de quem sofre, neste caso, para quem teve a infelicidade de abusar do álcool. Muito cuidado com o juízo de valor. Na área de saúde, não se julga os outros, isso é para a área do Direito.

  

          Envolvida em um caso desses que estamos tratando aqui, estava dentro de uma ambulância, em uma ocorrência com o meu filho que abusou do álcool em uma festa. Deixando de lado o ocorrido, fomos levados à UPA e os profissionais trocavam informação com o pessoal do plantão sobre o caso em questão. Imagine entrar na sala de visita do inferno, junte-se a isso o caso de obesidade e a ingestão de bebida alcoólica. Imagina, professora de humanização em saúde, vivenciando na pele o que ouvi de tantos relatos. Uma noite inteira no inferno. Uma noite inteira tendo que implorar atenção aos profissionais do plantão. Esquecendo os detalhes do atendimento precário e sem nenhuma humanização, chego a pensar: um paciente com a pressão alterada, obeso, com relato de desmaio, vômito, dores fortes na cabeça, se não estivesse acompanhado, o que mais sofreria largado à própria sorte na enfermaria? 


          Passou. Mas pense, sei que há critérios e protocolos de atendimento, mas não precisamos escolher quem vai morrer e quem vai viver, muito embora a precariedade dos serviços às vezes pode forçar a esse tipo de escolha.  


Mas estamos falando do Código de Ética. Estamos falando sobre humanização, sobre atendimento e códigos de conduta em saúde. O que faz um profissional de saúde se omitir no atendimento sob a alegação de que Alcoolismo não é urgente?   


          O que preferíamos era que houvesse atendimento para todos, recursos para todos para que não precisássemos escolher quem vai viver e quem vai morrer. Todos, indiscriminadamente, têm assegurado pela Constituição o atendimento em saúde. E é claro que, na prática, isso sofre uma quebra terrível nos protocolos éticos. O que é lamentável. Mas a realidade do dia a dia em saúde possui suas peculiaridades.  


          Em uma palestra sobre humanização em saúde, em um congresso de Psicologia, fui provocada por uma nutricionista: - Profª., e quando estamos em um plantão de mais de 24 horas e, na hora que vamos para o intervalo de nossa alimentação, os pacientes nos agridem como se não fossemos humanos também? Não tem como humanizar os pacientes? Tensão na plateia. E agora, o que responder para essa profissional? Respondi com uma pergunta: Podemos humanizar a dor? Como dizer a um paciente que chegou de madrugada para conseguir uma consulta, que justamente depois de horas esperando a sua vez, justamente na sua vez, o profissional (médico, enfermeiro, fisioterapeuta etc) vai sair para comer, descansar no intervalo? É justo para ele? E é humano esperar desse profissional, que está ali cumprindo horas de plantão, que ele não saia para se alimentar ou descansar porque ainda há uma fila enorme de pacientes aguardando? Culpa de quem? Asseguro-lhes com toda certeza: não é culpa do paciente. Nem do profissional. Mas a gestão precisa pensar em toda a equipe, na atendente, no médico, no maqueiro, na recepcionista, de forma que, ao sair um, outro assuma imediatamente. A dor não obedece a protocolos, pensem nisso. O cansaço de quem atende também não. Humanizar o paciente? Não, meus caros, humaniza-se quem cuida dele.  


          Quando nos referimos ao atendimento médico sem acepção de pessoas, lembrando do juramento belíssimo que nos comove nas colações de grau e nos enche os olhos de lágrimas nas cerimônias dos jalecos, fico aqui pensando por que a prática em saúde, em alguns profissionais (ainda bem que não são todos e temos realmente profissionais que honram o juramento) tira esse “primeiro amor do tempo do juramento” e transforma tantos sonhos em corações tão endurecidos? 


          Na vivência em sala de aula com os futuros profissionais de saúde, gosto de provocá-los no primeiro e no último dia de minhas disciplinas. No primeiro, pergunto-lhes qual a razão da escolha do curso. No último dia, repito a pergunta para ter uma ideia da vivência com a disciplina e com os casos vivenciados em sala de aula. É incrível ouvi-los e aprender com eles sobre humanização em saúde. Engana-se quem acredita que vai entrar em sala de aula e vai ensinar, a gente termina o semestre com o conhecimento dos que vivem a saúde no dia a dia: no dentista, no hospital, com fisioterapeutas, com psicólogos, nutricionistas... todo mundo tem alguma dor ou prazer para compartilhar.  


          Encerro este artigo com uma indicação de um livro que muda a nossa percepção sobre o nosso semelhante quando toda a nossa prática vem acompanhada da voz do paciente: “Pode me ouvir, Doutor? Cartas para quem escolheu ser médico”. Organizadores: Álvaro Jorge Madeiro Leite e João Macêdo Coelho Filho, da editora Saberes. Vale a pena a leitura e a viagem ao centro da vida do paciente. Indico aos nossos leitores, aos meus alunos e a todos que escolhem a área de saúde como prática profissional.  

          Humanização a quem sofre e a quem cuida, é a palavra de empoderamento em saúde para honrar os anos e anos em sala de aula e depois, exaustivas residências em saúde, pós-graduações e muitas especializações pela frente. É preciso que se saiba de uma coisa: quem sofre não escolhe hora, nem dia, nem quem o atenda. Quem sofre precisa apenas ser visto, acolhido e, quando possível, curado. Mas ambos os lados precisam ser ouvidos e tratados.


Por:  Dira Vieira 

Dra. em Sociologia 

6 comentários:

  1. Excelente artigo. Vale uma grande reflexão. Parabéns.

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  2. Excelente artigo, minha amiga! Cabe uma grande reflexão aos gestores e demais profissionais de saúde e, grande empenho para mudar radicalmente essa triste situação. O problema existe e é muito evidente, mas se àqueles que podem e têm o dever de mudar essa situação, não saírem do seu conforto e se, não sensibilizarem- se com esse triste quadro, infelizmente, ainda temos que sofrer essa realidade. Parabéns amiga, pela clareza dessa realidade.

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    1. Obrigada pela leitura. Exatamente, é preciso um esforço do gestor, para que trace planos de cuidados e acolhimento dos dois lados. Mas não podemos aceitar preconceito no atendimento em saúde.

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  3. Trazer à tona esse conteúdo, em meio a uma pandemia, é importante para refletirmos o acolhimento e as dores. Obrigada pela reflexão e esse olhar para o paciente

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    1. É delicado, há uma blindagem em torno do tema, mas é necessário falar sobre isso, sempre.

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